oi vegans: a morte vem antes bala

Podemos chegar no consenso de que a linguagem é o grande primeiro poder garantidor do ser social? Pois falamos de um fenômeno que dá forma, volume, delimita subjetividades e constrói realidades experenciadas e observáveis. O linguista Louis Hjelmslev atribui a linguagem o caráter de ferramenta, espelho e lugar. É viabilizadora de reconhecimento, legitimação e existência visto que só conseguimos pensar, conjecturar partindo de algo que de algum modo tivemos a possibilidade de perceber dentro de um parâmetro predeterminado. E é neste processo que conseguimos criar identificação, representação, estabelecer vínculos duradouros e promover a partir disto novas reformulações, transformações e até mesmo revoluções. Não é a toa que o debate sobre linguagem neutra é fermentado.

O mundo não existe até descrevermos. Pelo menos não pra gente. Uma espécie qualquer quando descoberta passa a ter significados a partir do instante em que é catalogada por um código humano de transmissão ora decodificado pela língua via gestos e/ou sons. Podendo gerar assim algum tipo de valor. O conhecimento com todos os seus prós e até contras – né Hiroshima? – é pavimentado através do acúmulo processado destas descobertas.

Bem… até aqui acho que também podemos concordar que durante toda a história do nosso país o conhecimento que foi aplaudido, copiado e difundido é ocidental e advindo especialmente do colonizador europeu. Em qualquer direção que olhemos somos expostos a uma narrativa que associa o requinte, a inteligência, o progresso e todo adjetivo mais fru-fru positivista que você for capaz de pensar aos tais caucasianos a despeito das culturas dos povos fundantes que compõem o país (negros e indígenas). O que se distancia do europeu é colocado como exótico, folclórico, forasteiro do conceito de etiqueta e até mesmo daquilo que é digno de ser considerado civilizado. É preciso dizer o quanto privilegiar construtos estrangeiros pode ser problemático pra um povo/nação? O quanto isso despolitiza, deteriora identidades, importa resoluções prontas e inadequadas impossibilitando o básico e consequentemente a construção emancipadora de saberes?

Este não é mais um texto pra falar basicamente mal da Europa, apesar de termos pontos de sobra pra isso. Mas pra seguir no projeto de fazer certa ‘justiça’! Na verdade, eu até entendo que podemos considerar a produção de conhecimento europeia, a certo modo, mas sem nos esquecer do que foi preciso para tal. Pois a proposta aqui não é pôr em completa oposição as narrativas europeias e africanas, ainda que possamos discutir a escrotidão presente na primeira. Mas determinar que para a costura efetiva da condição daquilo admitido como humano é preciso prescindir das concepções ocidentais hegemônicas que em muitos casos sequer sustentam os tais pioneirismos associados a ela [altos babados]. Em meio a pandemia do Covid 19 em que têm se falado muito de vacinas, vejo vez ou outra o crédito de sua invenção ser dado inteiramente a um europeu, por exemplo. Sendo que só pesquisando muito se encontra a sua verdadeira origem nos confins remotos da China. Isso só é possível muitas vezes ouvindo a história a contrapelo. Poderia passar inclusive estrofes e mais estrofes falando sem medo de errar do pioneirismo egípcio nas inúmeras esferas do conhecimento humano e de outros inventos em variados cantos do globo que em solo europeu foi revestido e apropriado. Mas prefiro resumir o baba visto que esse acirramento não ajuda a discussão proposta aqui.

O fato é que pra qualquer pesquisa feita, se gasta muito mais tempo procurando referenciais negros. Isso tem nome, se chama epistemicídio, como bem cunhou a ilustre Sueli Caneiro; o extermínio de conhecimento e saberes negros. [e veja só que tour!] Somos nós os impregnados do fardo de ter que despencar uma porrada de tempo só pra falar de racismo, enquanto tem branco discorrendo aos montes sobre a linguagem e seus efeitos, por exemplo. Porque falar de felicidade pro preto daqui cruza inevitavelmente o racismo. Isso é froid demais! E não é todo preto que fica afim dessa lombra. O DJ KL Jay disse a frase que escolhi pro título desse texto: “A morte vem muito antes da bala”. Isso significa que ao estabelecer uma narrativa hegemônica enquanto todas as outras são caracterizadas como periféricas, temos simbolicamente a morte dessas existências nas diversas camadas do ser e em determinados casos uma espécie de legitimação desta morte. Como aquela decorrente das políticas públicas de segurança que resultam nas dianteiras estatísticas de homicídio da população preta, especialmente se for morador de favela. Há quem ache que faz parte; ossos do ofício. O preto quando morre pela bala já foi assassinado anteriormente de variadas formas homeopáticas. O seu saber é um exemplo.

Por isso quero te fazer um convite aproveitando minha particularidade tocando no famigerado veganismo. Uma resolutiva branca pra um problema branco. Afinal não é à toa que podemos sim chamá-lo de movimento racista né veganwhasing? Nisto, mais uma vez, me agarro a cosmovisão africana que será exemplificada aqui pelos rastafari pra deixar evidente como mesmo antes do europeu que cunhou o veganismo, essa galera jamaicana já dava o nome sobre a causa a um bom tempo. Os rastafari pregam em suma o respeito a todos os seres vivos e a não ingestão de alimentos originados de animais. Assume uma postura que vai além do veganismo ao basear sua life longe do consumo do álcool, de elementos sintéticos e químicos nos alimentos. Entendem o ciclo da natureza e fundamentam-se ao tempo dela, a partir dela, não o contrário. Buscam liberdade espiritual, psicológica e física pois entendem que se trata de algo inegociável e não restrito para alguns, mas um direito de toda forma viva. A liberdade de um depende da liberdade de todes. Estudos apontam o seu surgimento entre trabalhadores e camponeses de origem africana que sentiam na sociedade uma ineficácia em oferecer a eles algo para além do sofrimento. Semelhante né? Inspirador, não é mesmo? Eu acho!

Mas sabemos qual movimento se popularizou mais, inclusive por aqui.

A essência rastafari pode ser melhor compreendida se nos valermos do materialismo histórico e aterrissarmos na “pré-história” e na antiguidade, onde os povos tradicionalmente agricultores eram os povos pretos africanos (clima ameno, muitas terras, água potável…), enquanto os europeus eram povos tipicamente caçadores (pois era difícil plantar no mundo de gelo que cobria a Europa nesse período). A cultura de caça europeia parece se relacionar, inclusive, com a violência característica da branquitude enquanto estrutura na história (esses que destruíram, saquearam e colonizaram o mundo todo) – para ler mais sobre isso, ver a teoria dos dois berços de Cheikh Anta Diop. Claro que essa discussão é muito mais complexa do que parece. Não se pode dizer que A resulta automaticamente em B avaliando a história sendo que existem inúmeros fatores variáveis entre suas grandezas. De todo modo a visão ocidental que aprendemos nos alimenta de carne e de opressões desde cedo. No mundo medieval se considerava que os vegetais e cereais eram comidas para os animais. Apenas o pobre era obrigado a substituir a carne pelos vegetais. A carne era o símbolo de status da classe alta. Quanto mais carne uma pessoa pudesse comer, mais elevada era a sua posição na sociedade. Já aqui durante o período de sequestro em massa dos povos africanos, muitos sequer se alimentavam de carne. Fato modificado pela necessidade através do incremento de carnes secas e restos de boi e porco (a partir do qual fizemos a feijoada); umas das poucas coisas que nos permitiam comer.

Enquanto indivíduo que não come mais carne e nem derivados do leite já defendi muito o veganismo fundamentado especialmente a partir das periferias (tem texto aqui no blog). Não estou negando isso agora. Mas questionando a importação de termos acriticamente a nossa geografia. Afirmando que necessitamos estar organizados em narrativas que deem cabo dos atravessamentos de todas as opressões que incidem na nossa materialidade atual. Não adianta um veganismo modelo Israel que prega o amor pelos animais e coloniza, explora o povo palestino, sabe?! Divulgar a mais nova receita salvadora do queijo de castanhas quando um singelo punhado de castanha custa os olhos do *. Lutar coletivamente frente as opressões estabelecidas no capitalismo requer estancar o discurso hegemônico via resgate daquilo e daqueles semelhantes a nós que vieram antes da gente. A mais simples oralidade tem o poder de determinar simbolicamente e pragmaticamente o que vive e o que morre. O candomblé traduz isso lindamente. Por essa razão precisamos estar alinhados com a história ouvindo e proliferando epistemologias ancestrais com sementes de vida. Isso é justiça epistemológica. Sabe aquela onda do ‘Vidas Negras Importam’ que em suma já diz o óbvio, mas há quem negue o contexto julgando-o ofensivo e retruque com o ‘Todas Vidas Importam’? ¬¬’

Aqui quero te convidar para o ‘Conhecimento Preto Importa’! Consuma!!! E se não for pedir muito, compartilha com o mundo o que você encontrar. Vou seguir tentando daqui.

Se você tem meios de se instrumentalizar, não permita que levem isso da gente. Pois o trabalhador comum mal tem tempo pra descansar direito. Precisamos por essa fita na mesa também. Então existem paradas que caem mais nas mãos de uns do que de outros. Mas se entendermos bem o que diz o Ubuntu e o Ukama já teremos um bom caminho pavimentado pra melhorar realidades precarizadas pelo sistema, sem esquecer de que pra transformá-lo em prol de TODAS as vidas só revolucionando-o radicalmente hein?! Derrubando o sistema econômico atual Pelo AMOOOR das folhas! Nutra-se e nutra os nossos pelos nossos, sem representação vazia, claro! Com honestidade e criticidade discursiva.

E caso associe a proposta de cercar-se da cosmovisão ancestral dos nossos com a ideia de fugir para as montanhas e viver isolado comendo somente planta, eu lhe direi que entendo pois não conjecturamos sobre o que desconhecemos; sobre o que não definimos [falo por mim até]. Não se reduz a isso. A proposta é discutirmos meios e nãos fins. Ideias e não produtos. Tecnologia e Modernidade é questão de referencial dominante e perspectiva. Não tô nem de longe sugerindo que lhe tirem de casa ou destruam teu celular, fique tranquilo. ‘rs

O modelo vigente ocidental não é sinônimo de pioneirismo. Capitalismo não é sinônimo de progresso. É só olhar pro lado.

Como ninguém faz nada pra comunidade sozinho, segue referencias:

Deixe um comentário